Aos moldes das narrativas das Mil e uma noites, Relato de um Certo Oriente se constrói a partir de um olhar individual, da narradora que retorna. O único momento em que ela narra de fato em primeira pessoa é no primeiro capítulo. Na sequência, os relatos passam a aparecer nos capítulos entre aspas, indicando a abertura do discurso narrativo para outra pessoa, como se fosse um relato dentro do relato.
A indicação do discurso direto se justifica ao final do romance, no último capítulo quando algumas coisas se confirmam ao leitor: o texto é uma tentativa de reconstrução do passado, a pedido do irmão.
No primeiro capítulo, o único de fato narrado em primeira pessoa, o que vemos é uma tentativa de organizar os relatos, como se indicasse que poderia haver alguma ordem. Na sequência dos capítulos, o que se apresenta são apenas os discursos dispostos entre aspas, como se ordenar aqueles relatos fosse algo impossível. Nesse caso, a escolha foi de ceder o espaço discursivo diretamente a eles ao invés de ordená-los.
No último capítulo, também entre aspas, reaparece a voz da narradora, explicando ao irmão a dificuldade de remontar essa história. Nesse momento, ao não assumir o discurso narrativo em primeira pessoa, mas sim no discurso direto, é como se nós, leitores, estivéssemos ouvindo as tais fitas às quais ela se refere ao irmão. Assim, todos os discursos que se apresentam entre as aspas funcionam num registro de oralidade.
Assim, são três os capítulos em que a narradora assume de fato as rédeas do relato e são esses três que servem de referência para a construção da estrutura narrativa, como se fossem os andaimes do texto: o primeiro, o sexto e o último. O primeiro é ordenado como a narrativa clássica de primeira pessoa, já os outros dois se configuram com o recurso das aspas, como se não fosse mais possível distinguir ou ordenar o que se ouviu e gravou das várias conversas que ela teve.
Narradora: depois de anos morando em São Paulo, depois de uma passagem por uma casa de repouso, ela retorna a Manaus, com o intuito de visitar sua mãe adotiva que há muitos anos não via.
Irmão da narradora (em Barcelona): Mora há muitos anos fora do Brasil e é para quem ela envia/enviará o relato da família.
Emilie: A matriarca da família, Emilie é a espinha dorsal que sustenta as relações familiares, estruturando toda a família. Católica devota, casou-se com um ensimesmado muçulmano – referido no livro apenas como o Pai.
Emir: O irmão “preferido” de Emilie, que a resgatou dramaticamente de um convento, antes de virem ao Brasil. Teve uma paixão em Marselha, de onde Emilie o resgatou, trazendo-o a Manaus. Suicida-se misteriosamente, criando em torno de si uma devoção especial de Emilie.
Emim: irmão de Emilie
Emílio: irmão de Emilie.
Marido de Emilie: referido no texto apenas como “pai” ou “marido”, era um muçulmano quieto, cujo trabalho e a leitura do Alcorão, na loja de tecidos da família, ocupava os dias.
Samara Délia: a filha querida que, na adolescência, acaba engravidando de um homem misterioso e passa a ser o alvo preferencial das maldades dos irmãos mais novos.
Soraya Ângela: filha de Samara, surda-muda, que morre tragicamente em um acidente de trânsito próximo ao sobrado da família. Era a companheira de infância da narradora e do irmão dela.
Hakim: o filho mais velho, único que sabia se comunicar em árabe, a língua dos pais. Foi o confidente da mãe, por ter aprendido a língua natal.
Gêmeos: os dois filhos mais novos de Emilie e do marido, são inomináveis, maldosos, devassos e cínicos. Agiam, na adolescência e início da idade adulta, como se estivessem acima de quaisquer convenções. Frequentemente, apareciam garotas grávidas ou com bebês no colo pedindo ajuda, dizendo que um dos dois era o pai.
Hindié Conceição: Amiga, vizinha e confidente de Emilie. É quem traz um dos relatos finais, no sétimo capítulo, quando revela saber o segredo do cofre, que só Emilie sabia. É quem acompanha a matriarca na velhice, morando nos fundos da casa.
O enredo se configura em torno de uma família, mas principalmente em torno da matriarca que está morta. Assim, tudo que nós leitores conseguimos saber sobre ela são através das múltiplas memórias que são invocadas ao longo da narrativa.
Uma vez que quem dita o ritmo desse romance são as memórias dos vários personagens, a linearidade e a cronologia são elementos fragmentados e dispersos. Podemos dizer que o enredo se constitui de forma lacunar, com espaços não preenchidos, saltos temporais para o passado, de forma mais ou menos irregular. Reconstituir a narrativa é um jogo de quebra-cabeças, em que não nos são dadas todas as peças de uma vez, mas aos poucos.
A costura “total” da história, a suposta linearidade bem como as lacunas/peças que faltam só se configuram de fato no último capítulo, quando a narradora assume que essa reconstituição é para ser enviada ao irmão, mas é quase um trabalho impossível, de dar rumo e sentido a esse emaranhado de lembranças e sensações. O que não pode ser ignorado é que a memória nunca é o fato puro, autêntico: ela é pontuada, povoada e, em certa medida, modificada pelos sentimentos e emoções de quem as detém. Assim, mais do que um retrato falho dessa família, tem-se uma biografia de afetos e desafetos em torno de Emilie.
O capítulo 6, em que novamente a narradora assume o posto, retomando o dia da sua chegada e explicando o que acontece até o “reencontro” com Emelie, é também o momento em que ela sai por Manaus e tenta, em alguma medida, reconhecer aqueles espaços da sua infância.
Aqui, a prosa quase poética de Hatoum toma conta, povoando a narrativa de sinestesias invocadas pela memória da narradora.